Natal, 1º de março de 2002
Caro Paulo Lopo,
Desculpe se já vou lhe tratando assim pelo nome, sem lhe antepor antes o “doutor” reverente e submisso que a plebe acresce a qualquer nome que tenha ou aparente ter poder nessa terra de algumas casas-grandes e tantas senzalas. Desculpe nem mesmo fazer uso do título de doutor –esse sim, merecido pela conquista no ofício árduo de estudar, de fazer e de ensinar Direito. Não faço isso por desrespeito. Nem para fingir intimidade –seja ela adquirida em sala de aula ou por ter meu finado pai partilhado com você alguma mesa de farra em outros tempos. Faço-o, sim, acompanhando Umberto Eco, esse grande pensador de nossos tempos, que inicia um diálogo epistolar com o Cardeal Carlo Martini chamando-o pelo nome e se justificando: “Entenda-o como um ato de homenagem (...). Há pessoas cujo capital intelectual é dado pelo nome com que assinam as próprias ideias. (...) É o reconhecimento de uma autoridade que se manteria mesmo se o sujeito não tivesse se tornado embaixador ou acadêmico (...).” Receba essas palavras como se fossem minhas.
Mas o propósito desta não é discutir formas de tratamento, é antes retomar uma discussão iniciada em sala de aula e que o tempo, infelizmente, deixou inacabada. Estou falando da discussão sobre a pertinência da inclusão do direito à propriedade entre os nossos direitos e garantias fundamentais (art. 5º caput –e reiterado no inciso XXII– da Constituição Federal). Você deve estar lembrado que antes de sermos interrompidos, a compreensão geral da turma dirigia-se para a aceitação de que tal direito estava um pouco (pra não dizer por completo) deslocado no caput do artigo, espremido que está entre o direito à vida, à liberdade, à igualdade e à segurança. A intenção do legislador também começava a parecer clara para todos: assegurar a mais alta valoração para aquele direito que, antes de ser de todos, tem servido mais como instrumento de dominação daqueles poucos das casas-grandes sobre os tantos das senzalas.
Não posso deixar de concordar com essa ideia. Alguém já disse, e eu não lembro mais se foi Engels ou outro qualquer, que a exploração do homem pelo homem começou quando alguém cercou o primeiro pedaço de terra e disse: é meu! Desse tempo imemorial até hoje, é pra isso que tem servido o tal “direito à propriedade”. Como é então que esse danado vem parar em nossa Constituição, lá juntinho do direito à vida e à liberdade? Acho que pelas mãos daqueles burgueses que derrubaram o rei da França e construíram esse admirável mundo novo que deixava Marx embasbacado de admiração. Esses mesmos burgueses que nos legaram a liberdade e a igualdade, ideais que foram buscar lá nos grandes sofistas da Grécia antiga e que transformaram em realidade –com todas as limitações que todos sabemos.
Direito –você sabe muito melhor que eu– é ideologia. E acima da Lei está o Poder. E quem tá no comando aqui são eles, os tais das casas-grandes.
Mas nem tudo está perdido. Lá pras tantas, perto do finalzinho da aula, lembro que você fez um comentário, do qual sou obrigado a discordar. Foi quando alguém lembrou daquele inciso XXIII, o que fala da função social da propriedade, e você comentou que colocaram ele ali à guisa de consolação, ou algo assim. É nesse ponto que eu discordo.
Esse inciso, Paulo, é pra mim tão importante quanto o caput do artigo, porque é ele que nos dá o apoio legal, constitucional, fundamental para empreender a luta pelos despossuídos. À Lei não importa qual tenha sido a intenção do legislador. Ela ganha vida própria na aplicação, ao deixar de ser letra para virar Justiça. “A vida do Direito é a luta” –já dizia o velho Rodolfo lá pelo Oitocentos, embora fosse anticomunista e defensor do “verdadeiro espírito da propriedade”. Direito é luta –disso você sabe também pela sua prática diária– e é preciso que, antes de reclamar ou lamentar, os protagonistas do Direito dele se valham para tentar trazer um pouco de Justiça a esta terra. A propriedade oprime, mas a Constituição diz que devemos buscar a sua função social. E que função social é essa? É o que nós fizermos dela. Se afastarmos “o véu da ideologia” do Direito e tivermos “olhos para enxergar o novo”, como diz Plauto Faraco, poderemos ver um mundo melhor e ajudar a construí-lo. Com o próprio Direito.
Era isso, Paulo, que eu queria dizer naquela aula e que o tempo não deixou. Mas talvez então me faltassem as palavras. Nesta carta tive o tempo necessário para dizê-lo e, pelo menos pra mim, posso dá-la (a aula) por encerrada.
Um abraço,
do aluno e admirador,
Roberto Solino
(Esta carta foi apresentada como avaliação final da disciplina de Direito Constitucional ministrada pelo prof. Paulo Lopo no curso de Direito da UFRN, em 2002).
(Esta carta foi apresentada como avaliação final da disciplina de Direito Constitucional ministrada pelo prof. Paulo Lopo no curso de Direito da UFRN, em 2002).